domingo, 6 de julho de 2014

Narciso, seu espelho, e o egoísmo nosso de cada dia

A mitologia grega conta de um jovem que se considerava tão belo que sua beleza só poderia se comparar à dos deuses. Após rejeitar o amor de uma ninfa, em virtude se achar incomparável, Narciso foi alvo de uma maldição, a de se apaixonar por sua própria imagem. Certo dia, o belo rapaz teria se debruçado sobre uma fonte de águas para beber, e, ao contemplar sua própria imagem, foi por ela seduzido e permaneceu em contemplação até morrer. Pode até parecer absurdo, mas temos tanto de Narciso em nós mesmos que nem damos conta de perceber. Nosso sofrimento é sempre pior do que o do outro. A alegria do outro é fútil, mas a minha tem fundamento. Quando o outro está com pressa, “azar o dele”, mas quando eu estou apressado é por uma necessidade real. “Narciso acha feio tudo o que não é espelho”, diz uma música, e, com efeito, nós também tendemos a ignorar ou menosprezar aquilo que não aponta pra nós.
Apaixonados por nós mesmos como por encanto, parecemos incapazes de recuar do reflexo de nossa própria figura. E nesse contexto egocêntrico, em que tudo o que enxergo remete a mim mesmo, nada mais natural do que buscar a auto-satisfação e auto-gratificação, confundindo essa busca com o próprio sentido da vida. Desde a antiguidade surgiram até mesmo correntes filosóficas formais que estabeleceram o prazer como bem supremo, como o Hedonismo grego e o Utilitarismo britânico. Embora essas doutrinas, em alguns pontos, incluam aspectos sociais de benefício mútuo, elas apontam de forma muito mais enfática para o bem-estar e felicidade individuais em detrimento do coletivo, além de tornar subjetivos os critérios éticos e morais.

Onde essa atitude interior e esse modo de viver nos levam? “De onde vêm as guerras e contendas que há entre vocês? Não vêm das paixões que guerreiam dentro de vocês? Vocês cobiçam coisas, e não as têm; matam e invejam, mas não conseguem obter o que desejam. Vocês vivem a lutar e a fazer guerras. Não têm, porque não pedem. Quando pedem, não recebem, pois pedem por motivos errados, para gastar em seus prazeres”, é o que escreveu Tiago em sua carta (Tg 4:1-3), fazendo perguntas que respondem a si mesmas, apontando o perigo do egoísmo narcisista. Muitas vezes utilizamos até a nossa fé em Deus como instrumento de conquistas pessoais. A vida que todos nós procuramos não está na gratificação pessoal. Quanto mais buscamos e cavocamos em nós mesmos, mais nos perdemos e nos distanciamos da essência da vida, mais ambiciosos e fúteis nos tornamos. Precisamos nos afastar desse espelho, voltar nossos olhares para Deus, o autor e mantenedor da vida, e para o nosso próximo, a quem nos foi dada a tarefa de amar.