A mitologia grega conta de um jovem que se considerava tão
belo que sua beleza só poderia se comparar à dos deuses. Após rejeitar o amor
de uma ninfa, em virtude se achar incomparável, Narciso foi alvo de uma
maldição, a de se apaixonar por sua própria imagem. Certo dia, o belo rapaz
teria se debruçado sobre uma fonte de águas para beber, e, ao contemplar sua
própria imagem, foi por ela seduzido e permaneceu em contemplação até morrer. Pode
até parecer absurdo, mas temos tanto de Narciso em nós mesmos que nem damos
conta de perceber. Nosso sofrimento é sempre pior do que o do outro. A alegria
do outro é fútil, mas a minha tem fundamento. Quando o outro está com pressa,
“azar o dele”, mas quando eu estou apressado é por uma necessidade real.
“Narciso acha feio tudo o que não é espelho”, diz uma música, e, com efeito,
nós também tendemos a ignorar ou menosprezar aquilo que não aponta pra nós.
Apaixonados por nós mesmos como por encanto, parecemos
incapazes de recuar do reflexo de nossa própria figura. E nesse contexto
egocêntrico, em que tudo o que enxergo remete a mim mesmo, nada mais natural do
que buscar a auto-satisfação e auto-gratificação, confundindo essa busca com o
próprio sentido da vida. Desde a antiguidade surgiram até mesmo correntes
filosóficas formais que estabeleceram o prazer como bem supremo, como o
Hedonismo grego e o Utilitarismo britânico. Embora essas doutrinas, em alguns
pontos, incluam aspectos sociais de benefício mútuo, elas apontam de forma
muito mais enfática para o bem-estar e felicidade individuais em detrimento do
coletivo, além de tornar subjetivos os critérios éticos e morais.
Onde essa atitude interior e esse modo de viver nos levam? “De
onde vêm as guerras e contendas que há entre vocês? Não vêm das paixões que
guerreiam dentro de vocês? Vocês cobiçam coisas, e não as têm; matam e invejam,
mas não conseguem obter o que desejam. Vocês vivem a lutar e a fazer guerras. Não
têm, porque não pedem. Quando pedem, não recebem, pois pedem por motivos
errados, para gastar em seus prazeres”, é o que escreveu Tiago em sua carta (Tg
4:1-3), fazendo perguntas que respondem a si mesmas, apontando o perigo do
egoísmo narcisista. Muitas vezes utilizamos até a nossa fé em Deus como
instrumento de conquistas pessoais. A vida que todos nós procuramos não está na
gratificação pessoal. Quanto mais buscamos e cavocamos em nós mesmos, mais nos
perdemos e nos distanciamos da essência da vida, mais ambiciosos e fúteis nos
tornamos. Precisamos nos afastar desse espelho, voltar nossos olhares para
Deus, o autor e mantenedor da vida, e para o nosso próximo, a quem nos foi dada
a tarefa de amar.
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